Os monstros na infância – sobre os medos

Os monstros na infância – sobre os medos

O mundo infantil é povoado por monstros. Monstros grandes, fortes, ferozes horripilantes, estranhos, de muitas cabeças, olhos, pele escamosa, que vomitam fogo, que rugem… basta observarmos as histórias e contos infantis, os filmes, os brinquedos, as brincadeiras, as cantigas de ninar, os desenhos animados e encontraremos essas criaturas e suas monstruosidades.

 

Os monstros assustam e fascinam as crianças. Ora os pequenos brincam de serem monstros, de enfrentá-los, ora fogem desses, se assustam, ora querem saber mais sobre os seus poderes e suas estranhezas. Quem nunca viu a cena de uma criança pedir para repetir inúmeras vezes aquela parte da história em que há uma bruxa malvada ou um monstro destruidor?

 

Essas criaturas estranhas, feias, fortes, ferozes são habitantes do mundo interno e dão mostras de que material e conteúdo compõem a vida infantil. Os monstros representam aquelas partes e forças secretas, ocultas e selvagens que estão em todos nós, que despertam medo, estranhamentos, angústia, dor. Esses afetos podem ser vividos pelos pequenos como grandes e temíveis monstros.

 

E por que as crianças se fascinam e recorrem tanto aos monstros?

 

Ao escutar histórias assustadoras ou ao brincar de faz-de-conta de monstro, as crianças estão aprendendo a lidar, a conhecer e enfrentar os seus medos, angústias, ira. Ao experimentar a sensação de medo, nas histórias infantis, nos filmes, por vezes a criança antecipa o alívio que irá sentir no final da história, porque sabe que tudo acaba bem. Esta é uma forma de lidar com seus sentimentos e buscar força e coragem para enfrentá-los. Ao escutar histórias com monstros e que provocam o medo, a criança estabelece uma relação entre ela e o personagem, concebe estratégias de como lidar e buscar formas de superá-los.

 

É importante para a criança brincar de monstro, bruxa, expressar sua agressividade através do brincar, pois ajuda, de forma ativa, a simbolizar e elaborar experiências, sentimentos e não os colocar em ato, como machucar outra criança, agredir.

 

As crianças também podem recorrer aos monstros quando se sentem e se veem desamparadas, inseguras, como na hora do sono, frente a situações novas, etc. As cantigas de ninar com seus monstros (boi da cara preta, a cuca, bicho papão) soam mais como assustadoras do que relaxantes, mas justamente esses monstros como nos fala Mario Corso*, ajudam a catalisar a angústia difusa da criança, permitindo a transição da vigília para o sono. Pode soar estranho, mas é melhor sentir medo de alguma coisa específica, que tem cara, forma e nome, do que a angústia. O medo de alguma coisa pode-se controlar, ficar longe, evitar, mas a angústia não tem forma, ela inunda o psiquismo e provoca um grande mal-estar. Se o monstro está dentro do armário, ou em baixo da cama, ou nas cantigas de ninar, o medo de ficar longe da mãe ao dormir e, consequentemente, perto de suas fantasias, pode agora ter nome, cara, forma e, paradoxalmente, nesse momento o monstro ajuda a criança a se acalmar para dormir.

 

O medo da criança pode ainda indicar aos pais o que as aflige emocionalmente. O medo é um sinal que algo de perigoso pode acontecer. Passar por muitos medos faz parte do desenvolvimento. É natural e esperado que as crianças sintam medo. Ele é um alerta de que algo ameaçador pode acontecer e evita que o ser humano corra riscos desnecessários. O medo de monstros, de trovão, do escuro ou de dormir sozinho são naturais e devem passar conforme a criança cresce e passa a ter mais recursos psíquicos. A ausência dele, em certas idades, é até preocupante, por exemplo, se uma criança não desenvolve o medo de fogo, de certos bichos, de altura ela não se protege frente a algumas situações. E quando o medo passa a ser um impasse no desenvolvimento das crianças? Sobre esse tema, que se relaciona com as fobias, deixaremos para outro momento, já que exige uma maior explanação que não cabe no atual texto. Atualmente vemos certo movimento de retirar toda e qualquer manifestação das crianças encontrarem nos recursos que a cultura nos dispõe meios de externalizar e mostrar seus monstros. Outro dia um menino me contava que aprendeu uma nova versão para a música do bicho papão “Nana neném do meu coração/Não tenha medo do bicho amigão”. O que assusta realmente as crianças não são os monstros de cara feia, grandes, fortes, que rugem, o que assusta as crianças é não encontrar suporte emocional que apazigue e garanta a expressão dos medos, angústia, raiva, dor. E apaziguar é transmitir a aposta para a criança de que ela pode lidar com seus monstros e que ela tem com quem contar. Para isso o adulto não pode ter medo de sua autoridade, de sua parte monstro, ou seja, não adianta falar para a criança que se ela não fizer tal coisa o homem do saco, o bicho papão as pega. Não há nada mais assustador para uma criança que se deparar com adultos que temam seu lugar de autoridade, que não assumam a função de segurança, referência e confiança de que ela necessita.

 

*Mario Corso é psicanalista, autor dos livros: Monstruário – Inventário de Entidades Imaginárias e de Mitos Brasileiros; Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis e Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia.

Thais C. Chies – thaispsico@espacodomquixote.com.br
Psicóloga do Espaço Dom Quixote

13 de Outubro de 2020

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